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30 anos de aids: a verdadeira história 
Laurie Garrett e Larry Kramer
 
Em 5 de junho fazem 30 anos desde o reconhecimento do surgimento de uma nova doença que estava matando nossa espécie. Seria a Grande Praga de nossa era, matando entre 28 e 35 milhões de seres humanos, e infectando cerca de 75 milhões com HIV. O artigo do Dr. Michael Gottlieb da UCLA, publicado em 5 de junho de 1981 no Morbidity and Mortality Weekly Report, cometeu um erro que tem assombrado a epidemia da aids durante três décadas.

Gottlieb observou que jovens homens sem histórico de doença estavam com falta severa de ar e morrendo devido à infecção pelo parasita causador da pneumonia, o Pneumocystis carinii, normalmente benigno. Os jovens tinham mais uma coisa em comum: eram todos gays. Seu colega em Los Angeles, Dr. Joel Weisman, também atendia a um grupo de homens jovens que também estavam morrendo devido a uma infecção normalmente benigna, o fungo Candida albicans: também eram todos gays. Em San Francisco, Dr. Donald Abrams estava tratando homens jovens com a pele desfigurada pelas manchas roxas grotescas e metastáticas do sarcoma de Kaposi, um tipo de câncer antes encontrado apenas em homens idosos. Todos seus jovens pacientes eram gays.

Médicos no mundo inteiro chegavam a conclusões parecidas: o novo pesadelo era um problema de homossexuais. O Centers for Disease Control (CDC), sediado em Atlanta, recebeu um orçamento pífio de $200 mil para tentar entender o fenômeno. Até o natal de 1981, a nova doença havia ganho o nome GRID, Gay-Related Immunodeficiency Disease (Imunodeficiência Relacionada a Gays).

A suposição de que o agravo estivesse associado tão somente à homossexualidade foi um erro trágico que assombrará a história para sempre. Permitiu que o presidente conservador Ronald Reagan, e a maioria dos principais líderes políticos em todo o mundo virassem as costas para a praga que estourava. As pessoas já vinham morrendo de aids no mundo inteiro, porém como resultado de relações heterossexuais ou injeções de substâncias narcóticas ou medicamentos com agulhas não esterilizadas. Dr. Fred Siegel atendia a uma imigrante dominicana no Hospital Monte Sinai em Nova York em 1979: ela morreu de aids antes mesmo da doença ter um nome. Dr. Henry Masur atendia a um grupo de 11 pacientes com GRID em seu consultório em Nova York em 1981, a metade dos quais eram heterossexuais ou usuários de drogas injetáveis. Em 1981, uma prostituta chamada Mrs. Profit (Sra. Lucro) pariu gêmeos, ambos dos quais morreram em San Francisco, de aids pediátrica. Dra. Margaret Fischl, em Miami, e Dra. Sheldon Landesman, do Hospital de King's County em Brooklyn, tinham consultórios abarrotados de mulheres e crianças moribundas, todas haitianas.

Foi somente em julho de 1982 que uma pequena equipe do CDC encontrou por acaso a pista mais importante para o entendimento da epidemia, que já estava fora de controle: a morte de hemofílicos. A hemofilia é uma doença hereditária do sangue ligada ao cromossomo Y e, portanto, encontrada apenas em pessoas do sexo masculino. A forma mais comum da doença faz com que meninos não consigam produzir uma proteína essencial para a coagulação do sangue, o Fator VIII ou o Fator IX. Sem esses Fatores, esfolar o joelho, ser picado por um inseto ou ter sangramento nasal pode ser fatal, visto que uma vez iniciado o sangramento, pode não parar nunca mais. Nos anos 1960, os cientistas descobriram como extrair os Fatores do sangue de pessoas saudáveis, criando concentrados que os hemofílicos podiam injetar em casos de terem se cortado ou ficado com hematomas, de modo que o sangue coagulava e não perdiam a vida. Em 1973, a National Hemophilia Foundation trabalhou com o governo dos EUA para criar uma rede de 141 centros de tratamento de fatores sanguíneos. E até meados da década de 1970, surgiu um milagre, quando a primeira geração de sobreviventes da hemofilia chegou à maioridade, tendo sobrevivido a ferimentos na infância, tornando-se adultos.

No entanto, para permanecerem vivos, esses homens continuavam precisando de injeções periódicas de Fator VIII ou IX, e é aqui que ocorreu o maior crime de nossa praga moderna. As proteínas dos Fatores são tão potentes que apenas quantidades extremamente pequenas são encontradas em um litro de sangue normal. Para poder fabricar concentrados dos Fatores em quantidades capazes de salvar vidas, as empresas farmacêuticas precisavam de milhares de litros de sangue, e cada injeção do Fator VIII ou IX continham o sangue de pelo menos 13 mil pessoas. Até chegar aos 18 anos, um menino com hemofilia provavelmente teria sido exposto ao sangue de mais de 100 milhões de pessoas. Em média, um usuário do Fator VIII ficava exposto ao sangue de 3 milhões de pessoas por ano. Sabemos que o vírus já estava lá; uma amostra de um lote de Fator VIII foi guardada e testada mais de uma década depois. Estava contaminada com HIV e 2.300 meninos americanos haviam sido injetados com o mesmo no ano de 1978. Até 1981, mais de a metade de todos os hemofílicos nos EUA estavam infectadas com HIV. Os Fatores sanguíneos fabricados por empresas dos EUA, em especial a Baxter e suas licenciadas estrangeiras, eram vendidos no mundo inteiro. Os escândalos derrubaram ministros em alguns países, e resultaram em processos milionários contra fabricantes, bancos de sangue e agências governamentais.

É provável que o HIV já tenha estado presente no sistema de transfusão de sangue dos EUA durante décadas, mas em níveis extremamente minúsculos em transfusões recebidas por pessoas que já estavam doentes, de modo que não produziam uma cadeia de infecção suficiente para chamar a atenção da saúde pública. Foi somente com a criação do sistema de tratamento da hemofilia, envolvendo uma população grande de homens jovens, muitos dos quais eram sexualmente ativos, alguns dos quais injetavam drogas, que a praga se deflagrou de vez. A equipe do CDC descobriu isso em julho de 1982, mas a indústria dos bancos de sangue e dos hemoderivados barraram até 1985 todas as tentativas de tornar obrigatória a testagem do sangue pela presença de vírus. E mesmo depois da proibição de produtos contaminados dentro dos EUA, houve fabricantes que continuavam conscientemente a vender e exportar Fatores sanguíneos e sangue contaminados com HIV e com hepatites virais para o resto do mundo. Foi somente em 1987 que foram desenvolvidos métodos eficazes de tratamento do sangue para matar o HIV, com base em métodos em uso experimental desde a 2ª Guerra Mundial.

Este legado medonho assombra os esforços de prevenção do HIV até hoje. Em vez de GRID, teria sido melhor se o nome dado à epidemia em 1981 tivesse sido BRID - Blood-Related Immunodeficiency Disease (Imunodeficiência Relacionada ao Sangue). Se, hoje, os esforços globais de prevenção e tratamento da aids estivessem baseados na BRID, talvez não existisse o pesadelo vergonhoso que estamos testemunhando. Se tivéssemos chamado essa praga pelo nome correto, BRID, talvez não haveria centenas de pequenas cidades na China nas quais a metade da população adulta está infectada por HIV, graças às injeções de sangue contaminado recebidas na década de 1990. Os governos na África Oriental talvez estariam combatendo rigorosamente o aumento elevado do uso da heroína em sua região, reconhecendo que gotinhas de sangue infectado com HIV permanecem escondidas nas agulhas utilizadas para injetar drogas. O mundo estaria criticando fortemente os países da ex-União Soviética, quase todos dos quais, ainda no ano 2011, criminalizam a maioria dos métodos seguros de uso de agulhas por dependentes de drogas e os tratamentos de dependência, como a metadona.

Incrivelmente, ainda hoje muitos países não testam corretamente todos os produtos de sangue. De fato, o sangue é um grande negócio, que atrai criminosos que vendem produtos adulterados, e doadores REMUNERADOS, a maioria dos quais são usuários de álcool ou drogas precisando de dinheiro rápido.

Neste 30º aniversário duvidoso da nossa praga do 21º século, os delegados que se reunirão esta semana na sede das Nações Unidas em Nova York para debater a epidemia da aids fariam bem se levassem em consideração a BRID. Estarão sendo pressionados para disponibilizar medicamentos a todas as pessoas já infectadas com HIV.  Aclamamos muitíssimo a ampliação do acesso aos medicamentos antirretrovirais a todas as pessoas infectadas com o HIV no mundo. Por outro lado, lembramos que enquanto a prevalência do HIV em um país atinge mais de 20 por cento dos jovens – como é o caso na África do Sul – o vírus continuará a estar presente em sangue contaminado, hemoderivados contaminados, seringas não esterilizadas e equipamentos médicos não esterilizados adequadamente.

Pensem na BRID, caso contrário esta deplorável histórica se repetirá. Para sempre.
 

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Acesso e Acolhimento com Qualidade: Um Desafio para o SUS
Celso Ricardo Monteiro[1]

Acessibilidade tornou-se uma questão central para o SUS no Brasil como um todo. Se antes falava-se na possibilidade apenas de adentrar os espaços públicos da saúde, agora é preciso avançar no que tange o real sentido da palavra acesso. Assim, acessibilidade está associada ao encontro entre o sujeito e a resposta real às suas necessidades, para além da oportunidade de alcançar os seus objetivos junto da unidade. Aqui, portanto, oportunidade é pouco. A partir desta perspectiva acessibilidade é o elemento que vai da necessidade do sujeito à resolubilidade, o que implica em devolver-lhe (construir coletivamente e com a plena participação dele) uma condição diferenciada da atual. Para as questões acerca do acesso, é fundamental a reflexão sobre o quanto este acesso é fato concreto no universo do Sistema Único de Saúde. As medidas que foram tomadas nos quase trinta anos do sistema dão conta desta discussão ou precisamos de novas tecnologias? Que outras possibilidades poderiam vir a se tornar fato real no sistema público de saúde, diante das filas e os problemas que levam as pessoas a busca do serviço de saúde?
        
Inúmeros fatores são determinantes no universo da acessibilidade, logo compõem essa discussão: os serviços, insumos, diagnóstico, tratamento e recurso humano adequado, eficiente e eficaz. Para que os serviços sejam de fato universais é preciso a clareza do quanto ele pode ser colaborativo e envolvente para além de “curativo” e emergencial. Faz-se urgente outra visão, capaz de encontrar outros paradigmas em saúde, que seja eficaz e encontre no seu desenvolvimento a atenção necessária para que as ações, os insumos, o diagnóstico e o tratamento, alcancem de forma qualitativa a imensa quantidade de beneficiados, sem restrições de origem alguma e com isso, reabre-se o debate á cerca da necessidade de inovação tecnológica. As estratégias geradas até aqui são parte de um processo que proporcionou inclusive esta discussão e esse é o momento de reflexão que mais interessa a sociedade, sendo que é fundamental que a sociedade contribua, debatendo e questionando o como se dá a universalidade do serviço e da atenção, quais os resultados obtidos com o avanço das ações desenvolvidas acerca da integralidade do sujeito e o como estas questões estão associadas à promoção da equidade em saúde.

Se considerarmos que a acessibilidade é o fator que mais se associa ao pleno uso de bens e serviços, ainda restarão questões como: o que fazer com as desigualdades múltiplas que alteram as condições de vida da sociedade, mas desaguam na promoção e atenção à sua saúde, muitas vezes impedindo-as de avançar? Como lidar com as questões que são acentuadas no estado de saúde do sujeito, que são tratadas pela saúde pública, mas não são geradas necessariamente pela presença de agravos?
    
Estas tecnologias devem estar associadas ao pleno acolhimento das pessoas como elas são, tal como as suas necessidades em saúde. Sabe-se que é preciso “propor alternativas que apontem para a superação de uma rede de serviços que equivocadamente trata somente as doenças, substituindo-a por uma rede efetivamente de saúde, orientada não somente para ações de promoção, proteção e recuperação da saúde, mas também com a sustentabilidade de ações intersetoriais”, mas, será que o sistema de saúde pública tem apenas isso para oferecer? Suas ações cotidianas no território de cada uma das centenas de unidades limitam-se a isso?  Que lições podem ser tiradas deste processo que vai do direito à saúde, até a saúde suplementar?

Para o Ministério da Saúde o acolhimento “é o estabelecimento de uma relação solidária e de confiança entre profissionais do sistema de Saúde e usuários ou potenciais usuários, entendida como essencial ao processo de co-produção da Saúde, sob os princípios orientadores do SUS (universalidade, integralidade e eqüidade). Traduz-se nas atitudes dos profissionais e, também, nas condições e processos de trabalho envolvidos na recepção e atendimento aos cidadãos, onde quer que ele se dê: na comunidade, nos ambulatórios, em hospitais ou demais unidades e serviços de saúde.”

A municipalização dos serviços é de fato, um elemento central na condução do sistema, pois assim, a lógica da territorialidade permite que cada sujeito, cada realidade e cada contribuição tenham de fato, a escuta necessária e de forma qualificada. No território, as ações e pessoas são sujeitas de fato e não apenas de direito, assim, podem acolher a demanda que lhe for apresentada, de forma que se envolva plenamente em busca da resolubilidade. Mais uma vez, as ações á cerca do acesso e do acolhimento esbarram na forma como se entendem a presença e a ausência dos profissionais de saúde neste processo. Cada vez mais, o desenvolvimento do sistema deve ser pensado de forma associada ao número de profissionais de saúde e as tarefas desenvolvidas com excelência, seja no campo da prevenção de doenças e as articulações necessárias para a que a população não precise usufruir do binômio médico-remédio, seja no campo da atenção, onde a saúde deve ser orientada para além dos números, sem ignora-los. As ações em saúde devem, portanto, levar em consideração a importância de recurso humano adequado e valorizado. Quais as condições necessárias, portanto, para a garantia do pleno direito à saúde, a partir dos papéis e competências de usuários, profissionais e gestores da saúde? Como e qual a intervenção necessária para que Município, Estado e União, construam “O SUS que Queremos” sem que os processos de uma forma geral ignorem os avanços obtidos no denso terreno da universalidade e da descentralização da saúde? Como dar fim a imposição dos obstáculos que inviabilizam a utilização dos serviços, seja por falta de condições do usuário, seja por impedimentos instituídos no âmbito dos serviços?”

Todas estas questões devem estar associadas ao processo de trabalho, que por sua vez envolve o intenso universo da educação permanente em saúde. Assim, também a humanização deve destacar-se neste cenário, como um elemento central para o desenvolvimento das ações, a qualidade da atenção e garantia do acesso. Desta forma, a política de humanização da saúde que queremos para o sistema é um campo a ser melhor explorado pelos diversos atores que compõem este mesmo sistema, seja porque trabalham para o seu pleno desenvolvimento, seja porque a participação e o controle social, são suas diretrizes. Mas não estaríamos centralizando as possibilidades de avanços do serviço ao pensar que a humanização é a única possibilidade de atuação? O serviço público de saúde pode elaborar outras medidas de acesso, acolhimento e atenção conforme as suas realidades locais?

As medidas e tecnologias implicadas neste processo estão associadas ao SUS que temos. Sendo assim, é fundamental a retrospectiva e nela, a análise dos cenários do passado, bem como da conjuntura atual. No momento em que o Brasil prepara-se rumo a 14ª. Conferência Nacional de Saúde, estas questões precisam ser respondidas com a certeza de que na população, no serviço e nas três esferas da gestão pública, tem-se a clareza de que o SUS que dá certo é o que estamos construindo gradativamente, passo-a-passo, todos os dias, com diferentes sujeitos.
     
Referências Bibliográficas:
BRASIL. MINISTÉRIO DA SAÚDE, Conselho Nacional de Saúde: 14ª Conferência Nacional de Saúde – Documento Norteador para os Debates.
MONTEIRO; Celso Ricardo. DST/HIV/AIDS na Metrópole, In Relatório Final da 3ª. Conferência Municipal de DST/HIV/AIDS. Outubro de 2009.
BRASIL. MINSTÉRIO DA SAÚDE. Acolhimento aos Usuários In O SUS de A a Z. Consulta ao site:


[1] Programa Municipal de DST/AIDS – Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura do Município de São Paulo. Contatos: crmonteiro@prefeitura.sp.gov.br  


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Conferência Nacional de Saúde: esgotamento e crise
Por Paulo Capel Narvai*

Não é que esteja tudo errado com a Conferência Nacional de Saúde (CNS), apenas há muita coisa equivocada, coisas que não funcionam e outras que não deveriam mais estar sendo feitas. É preciso mudar. Mudar logo, mudar muito e se renovar, para se fortalecer. Este é o ponto de vista central do trabalho intitulado “Conferência Nacional de Saúde: esgotamento e crise” que submeti ao 5º Congresso Brasileiro de Ciências Sociais e Humanas em Saúde (São Paulo, 17 a 20/4/2011), organizado pela ABRASCO. O estudo resulta de pesquisa que tomou como objeto de investigação a estrutura e o funcionamento da 13ª Conferência Nacional de Saúde (2007), com foco nas etapas municipal de São Paulo, estadual paulista e nacional. Foram analisados regulamentos e regimentos de conferências e feita observação participante, na condição de delegado.

Neste artigo, sumário de um paper em preparação, indico as principais conclusões da pesquisa e avanço em algumas sugestões ao processo de organização da 14ª Conferência Nacional de Saúde.

Finalidade – Desde que as CNS são realizadas (1941) sua finalidade tem variado, indo do “facilitar ao governo federal o conhecimento das atividades concernentes à saúde” (1941) ao “fortalecimento da participação social na perspectiva da plena garantia da implementação do SUS” (2007), passando pela avaliação das condições de saúde, avaliação de programas, dentre outras. É crucial rever a finalidade da CNS. O que queremos, em nossos dias, com a realização de conferências de saúde? O que estamos fazendo com e nas conferências está em conformidade com o que queremos desse evento? Digo “estamos fazendo” e “queremos” colocando-me no pólo dos que defendem o direito universal à saúde e dão combate sem trégua aos que mercantilizam (monetariamente, eleitoralmente...) os cuidados de saúde e aos que querem fazer negócios com saúde e, nesse setor, acumular e reproduzir capital.

Estrutura e Funcionamento – É preciso mudar radicalmente a estrutura da CNS, que segue reproduzindo o formato delineado na 8ª CNS, com grupos de debates e uma plenária final, no último dia, para a qual são empurradas as decisões da conferência. Esse formato está esgotado e insistir nele é um erro grave, que está comprometendo a própria credibilidade da Conferência Nacional de Saúde. Seguir realizando mesas e grupos de debates na etapa nacional, e suprimir pequenos avanços como foram as plenárias temáticas, é um retorno equivocado a dificuldades que todos conhecemos bem. Na 13ª funcionaram as plenárias temáticas, uma modalidade que possibilitou antecipar decisões e livrar a plenária final da leitura, discussão e votação de algumas centenas de propostas. Ao analisar o Regimento da 14ª CNS, divulgado recentemente, observei que esse avanço da 13ª foi abandonado. É um erro. Com essa decisão, centenas de propostas serão levadas à Plenária Final, congestionando-a ainda mais. Pode ser que essa decisão tenha resultado de alguma avaliação da 13ª, à qual não tive acesso. Desconheço, portanto, os motivos que levaram à supressão das plenárias temáticas como instância de tomada de decisão pelos delegados. Se essa supressão estiver articulada com outras iniciativas para melhorar o funcionamento da Conferência, pode ser que eu esteja errado (tomara que sim), mas, como ato isolado, essa supressão não resolverá problemas estruturais e pode ser sim um retrocesso importante. Um dos problemas identificados na pesquisa é que a CNS ainda não chegou à era da informação. As etapas municipal e estadual seguem desconectadas da etapa nacional e o fato de terem aparecido 373 propostas inéditas na etapa nacional da 13ª CNS, que se somaram às 588 que constavam do Relatório Consolidado das conferências estaduais é demonstração cabal da absoluta desconsideração dessas etapas. Afinal, se após realizar conferências envolvendo cerca de 1 milhão e 300 mil pessoas, em todas as 27 unidades federativas e em 4.413 municípios, foi necessário acrescentar mais 64% de propostas “inéditas” na etapa nacional, então esse esforço por todo o país foi, nesse aspecto, inútil – ou quase isso. Felizmente, consta do Regimento da 14ª CNS que não mais serão aceitas essas propostas na etapa nacional. É preciso, agora, fazer valer esse Regimento – e não rasgá-lo, como aconteceu na 13ª CNS. E para que não seja mais necessário inserir propostas inéditas na etapa nacional, urge que se supere essa verdadeira “barreira da China” que, com o passar do tempo, foi se erguendo entre a etapa nacional e as demais etapas. Para muita gente, a Conferência Nacional de Saúde começa e acaba na etapa nacional. Não é mais possível conviver com isso. Nós precisamos retornar ao Sérgio Arouca, quando, a propósito da 8ª CNS como um processo, em que a etapa nacional era inseparável das, à época, chamadas “pré-conferências” estaduais, dizia que “A Conferência deixou de ser quatro dias para ser um grande processo o ano todo e que, mobilizando a sociedade brasileira, a ciência, a academia, os profissionais, possa caminhar (...) para a construção de um grande projeto (...) uma verdadeira reforma sanitária”. Nós precisamos retornar à perspectiva do Arouca, e informatizar a CNS, viabilizando esse “grande processo o ano todo” a que ele se referia, mas, agora, com o uso da internet e todos os instrumentos e ferramentas que a era da informação nos disponibiliza, para aprofundar a luta pelo direito à saúde e, com isso, ampliar e fazer avançar a democracia brasileira. As Conferências de Saúde, não obstante seus problemas e dificuldades, são uma monumental conquista da cidadania, que não apenas a fortalece, mas também serve de exemplo para outros setores da vida nacional, notadamente os envolvidos diretamente com as políticas públicas. Por isso, por sua história de protagonismo e vanguarda, a CNS não pode temer mudanças. Deve, ao contrário, buscá-las incessantemente.

Informatizar a CNS – A CNS precisa também superar o constrangimento antidemocrático de, na etapa nacional, suprimir propostas aprovadas nos Municípios e nos Estados/DF. Em contextos democráticos, como o que vivemos no Brasil, não se trata mais de eliminar propostas válidas, legítimas, democraticamente aprovadas no processo da CNS. Basta aferir o grau de concordância dos delegados com cada proposta, reconhecendo-as todas como representativas e importantes. Respeitar minorias, e não massacrá-las. Desse modo, a CNS deve evoluir para superar o clima de conflagração que tem marcado as conferências, alimentado tensões, desrespeitando minorias e se caracterizando por excluir e não por auscultar. A CNS precisa auscultar o país, e superar o ambiente de “praça de guerra” que tem predominado. O formato, e a dinâmica, atuais favorecem o confronto em detrimento da consulta. Sem falar que tem gente que, optando pelo confronto puro e simples (muitas vezes raivoso), pensa que “está na luta” quando está, simplesmente, sendo malcriado e desrespeitando a quem não deveria. Para superar o clima de guerra e avançar democraticamente, a CNS precisa ser construída on-line, com cada Proposta sendo escrita coletivamente, pelos delegados municipais, estaduais e nacionais, mediante acesso qualificado ao site da CNS (aliás, é simplesmente inconcebível que a Conferência Nacional de Saúde não tenha um site específico, destinado exclusivamente para esse fim). Uma tarefa imediata, para a 14ª CNS é, portanto, criar um site e começar a escrever, imediatamente, a partir das conferências locais, as propostas que serão analisadas na etapa nacional. Nesta, por sua vez, é preciso aposentar definitivamente os crachás de votação. É indispensável adotar um sistema eletrônico de votação, dotar cada delegado de um terminal de votação digital e publicar imediatamente, no “telão”, os resultados de cada votação, identificando o grau de adesão a cada proposta. Não há impedimento técnico intransponível. É possível e é preciso fazer isto, avançar, modernizar a CNS e deixar no passado das nossas memórias o “espetáculo democrático” dos crachás subindo e descendo, em votações intermináveis, e em recontagens que não nos deixam saudade.

Tamanho e instalações – Tem predominado nas CNS, desde a 8ª Conferência (1986), a idéia de que conferência boa, bem-sucedida, é conferência “massiva”. O número de delegados e convidados cresce a cada edição da CNS (na 13ª foram 3.182 participantes: 2.627 delegados, 336 convidados e 219 observadores). Então, avalia-se que quanto mais gente em Brasília, melhor a Conferência. Confunde-se democracia com quantidade de participantes; acúmulo de forças, com acúmulo de gente. É um despropósito. Conferência boa é conferência democrática, que cumpre sua finalidade, funciona bem e proporciona instalações adequadas e algum conforto aos participantes. Nas últimas conferências as instalações têm deixado muito a desejar – não obstante o esforço e dedicação abnegada dos organizadores. Os problemas vão de cadeiras inadequadas à qualidade do som, passando por conforto térmico, ventilação, alimentação. As filas intermináveis para o restaurante frequentemente “tiram” os delegados das atividades. Na 13ª CNS houve momentos em que havia mais gente no restaurante (nas filas e comendo) do que na plenária. É preciso reavaliar, com prudência e cautela, por certo, os números de delegados e convidados que a Conferência precisa e quer ter. Hoje, com esses problemas organizativos, a CNS parece estar negando a lei dialética que trata da transformação da quantidade em qualidade: nesse caso, a quantidade de participantes está comprometendo a qualidade – e não se transformando dela.

Plenária Final – Temos assistido a uma enfadonha rotina de conferências inacabadas, com plenárias finais que têm de deliberar sobre mais de 1.000 propostas, tendo cerca de 500 minutos para isso. No caso da 13ª CNS, a plenária final aprovou 857 propostas e 157 moções. Iniciou-se às 10h03 do dia 18 e se encerrou às 2h31 do dia 19/11/2007, com dois intervalos para o almoço e para o jantar. Durou exatos 685 minutos de atividades; quase 17 horas, considerando os intervalos. Não se pode mais repetir erros desse tipo. Chega a ser grosseiro. As plenárias finais deveriam decidir sobre não mais do que uns 50 itens/propostas e deles se ocupar com tempo, aprofundando prós e contras, possibilitando que diferentes pontos de vista pudessem ser expressados nesse momento máximo do processo. (Aliás, é crucial que todos, delegados e organizadores, compreendam que a CNS é um processo, com vários eventos em todo o território brasileiro, e não é, apenas, “um evento em Brasília”) E, então, democraticamente, votar o que for necessário, sem açodamento, sem pressa, sem atropelos. Muito importante: é preciso cumprir os horários. Começar atividades com 2 ou 3 horas de atraso é inaceitável. Deixar ministros de Estado e outras autoridades esperando mais de duas horas pelo início de uma mesa de debates, como aconteceu na 13ª CNS com o Ministro Luiz Dulci, Secretário Geral da Presidência da República, é um desrespeito ao convidado, mas é, também, um grave desrespeito ao delegado e a todos que ele representa. Não é “bonitinho”, nem “cultural” fazer isso. É falta de educação mesmo. Uma boa conferência de saúde deve começar (e terminar) com... educação. Respeitar horários é exercício de educação, deve ter função pedagógica num evento como a CNS. E, então, que venha a 14ª CNS: ousada, criativa, inovadora. Ninguém quer mais do mesmo, com exceção dos inimigos do SUS e do direito universal à saúde, que ficam satisfeitos e felizes da vida com cada tropeço nosso.

*Sanitarista. Professor Titular de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Ativista pelo direito à saúde e proteção social (ajudou a fundar e a dirigir o CEBES, a construir a ABRASCO e a Associação Paulista de Saúde Pública), é militante histórico do movimento da Reforma Sanitária e veterano de Conferências de Saúde, nas quais fez quase tudo, desde a 8ª CNS. Participou de dezenas de Conferências, gerais e temáticas, como debatedor, convidado, delegado e membro de comissões organizadoras e de relatoria. Dentre as últimas imprudências cometidas nesse campo, estão ter ajudado a organizar a 4ª Conferência Nacional de Saúde Indígena (2006) e assessorado a Comissão de Relatoria da 1ª Conferência Mundial sobre o Desenvolvimento de Sistemas Universais de Seguridade Social (2010).

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 Corações partidos e petrificados
 Por Lígia Bahia*
Por trás dos rompantes lamentando a impossibilidade de todos os brasileiros terem o mesmo atendimento à saúde que curou alguns ou permitiu-lhes viver mais e melhor, nota-se alívio, culpa e compaixão. Entretanto, os espíritos elevados, especialmente os que animam autoridades públicas submetidas a terapias caras e prolongadas em estabelecimentos privados, logo intuem que os custos envolvidos com determinadas doenças, que acometem mais as pessoas de menor renda, não teriam, por ora, como ser financiados. Contidas pelo cálculo, essas bondosas emanações não irrompem; ficam pairando por aí, para retornar quando alguém importante tiver um problema grave de saúde e for sacudido por fortes sentimentos de finitude e semelhança com os demais mortais.

A experiência com a oferta de tecnologias médico-hospitalares abrigadas em espaços fortemente demarcados por diversas barreiras discriminatórias, entre as quais a cobrança de valores muito superiores à capacidade de pagamento da maioria da população, confunde a ordem dos fatores. A variedade dos especialistas mobilizados para cada caso, o uso de equipamentos modernos e a sofisticação de espaços físicos propositalmente adaptados para a exclusividade dos atendimentos induz a troca entre causa e efeito. Passa-se da certeza sobre a existência de tudo isso, porque é para poucos, para a conclusão: é melhor possuir uma medicina considerada de Primeiro Mundo, mesmo inacessível para a maioria. Não há quem em sã consciência discorde dos argumentos sobre a importância de determos expertise e recursos similares aos dos mais renomados templos internacionais de cura. Entretanto, para a saúde, nem tudo que é bom é caro e privativo. Os dispêndios vultosos tornam-se, quase sempre, subsidiados por recursos públicos. Por essas razões, a estratificação social não impede a vigência dos sistemas universais de saúde em diversos países desenvolvidos. Neles, existem instituições públicas e privadas, desde os anos 70, encarregadas de regular o acesso e utilização de tecnologias para todos.

No Brasil, tentamos seguir o modelo geral, mas com uma inversão no fluxo dos recursos: o público corre para o privado. As estratégias para a obtenção de benefícios particularizados, legitimadas por instâncias públicas, desfavorecem a transformação de interesses em direitos. Para contornar o problema das desigualdades geradas politicamente, descarta-se a saúde da lista de prioridades e afirma-se a eficácia de soluções administradas com conta-gotas. O dano causado por tais tergiversações é imenso. A sobrevida média de uma pessoa com câncer nos países europeus, Canadá e nos EUA fica entre 12 e 14 anos; e, no Brasil, entre 2 e 4 anos. Com bons tratos, um número ínfimo de nativos atinge o escore estrangeiro. Para a maior parte dos pacientes, o diagnostico tardio e as dificuldades de acesso oportuno ao tratamento diminuem as chances de sobrevivência.

Esses fatos, embora bastante conhecidos, sequer triscam disparidades acumuladas ao longo de décadas. O temor da padronização, em especial no que se refere à assistência médico-hospitalar, é profundamente arraigado entre integrantes de segmentos de maior renda. Qualquer gesto direcionado a estabelecer como, onde, para quem e o que será financiado com recursos públicos assusta. É interpretado como ameaça de rebaixamento de um padrão assistencial desejável exatamente por permitir a reserva antecipada dos melhores lugares. Quem supõe "segurar" um plano de saúde na mão pode permanecer indiferente ou mesmo indisposto frente aos desafios de desbloquear os obstáculos para compatibilizar o direito à saúde com o desenvolvimento econômico e social do Brasil contemporâneo.

As tarefas de estabelecer, aproximar e ordenar uma relação consequente entre a ciência, a técnica, a resolução de problemas e a construção de um país mais democrático competem ao governo, aos partidos políticos, às entidades profissionais, empresariais e a outras organizações da sociedade civil. As pressões de vários mercados pela incorporação de tecnologias caras e nem sempre custo-efetivas impactam o orçamento da saúde. É a avaliação da efetividade das tecnologias que auxilia a fundamentação de propostas de racionalização das decisões e práticas. Maximizar o acesso e a qualidade dos serviços de saúde, explicitando fontes e volume de gastos, bem como a destinação dessas despesas, será um fardo bem leve, comparado ao peso incomensurável da negação monossilábica ao acesso, ao atendimento.

A legislação brasileira nos resguarda das rudes polêmicas sobre o conselho independente de especialistas - que basearia sua atuação nas evidências sobre a segurança e efetividade de tecnologias proposto pelo governo Obama. Opor as concepções sobre a escolha individual do consumo de serviços de saúde à da organização de um sistema social que lida com a vida e a morte parece primevo. Já superamos, pelo menos formalmente, esse estágio.

O SUS tem muitos significados. Mas nenhum deles franqueia a apropriação por poucos do acervo coletivo de conhecimentos e atividades disponíveis para evitar riscos, restabelecer a saúde, evitar a dor e o sofrimento. A institucionalização de um processo permanente de avaliação de programas, serviços e tecnologia para a saúde, articulado com a regulação de preços, devolve-lhe seu sentido conflitivo, de espaço de passagem do individuo ao cidadão e progressão da garantia e expectativas de direitos à saúde. Esse é o melhor remédio para prevenir corações partidos e curar os petrificados.

*Vice-presidente da ABRASCO e professora de economia da saúde no Instituto de Estudos em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IESC/UFRJ). Artigo publicado no Jornal O Globo, em 02/05/2011.

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"As cegonhas vão parir ... tudo está resolvido"
Por Clair Castilhos*


Quando a presidenta Dilma Rousseff lançou o programa da Rede Cegonha inicialmente fiquei muito preocupada. Isto porque o Programa parece substituir a Política Nacional de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PNAISM, 2004), que por sua vez é a continuidade do Programa de Assistência Integral à Saúde da Mulher (PAISM, 1984) datado de quando o movimento de mulheres e feminista “adentrou” no Ministério da Saúde. Após muito esforço e paciência, conseguimos superar a velha e carcomida concepção de Saúde Materno-Infantil, pelos novos conceitos de Saúde da Mulher, formulados pelo movimento feminista e pelos (as) técnicos (as) da área.

Fiquei numa dúvida “hamletiana”, afinal como as cegonhas iriam nos substituir no ato de parir? Ou será que algum “marqueteiro” da campanha presidencial, apostando na infantilização das mulheres e do povo brasileiro resolveu buscar inspiração em uma das tantas lendas que envolvem tão nobre ave pernalta? Pensei que poderia ser um programa associado às gravidezes das “top models” devido à semelhança com o porte elegante e altivo da ave, depois imaginei que sendo um governo popular, de recorte e tendência para os (as) trabalhadores (as) poderia estar se referindo aos caminhões cegonheiros que transportam carros (também devido ao grande incremento desta indústria de ponta, em nosso país). Afinal, resolvi me instruir no Dicionário do Aurélio e o verbete, referente “cegonha” me deixou mais tranquila. Vejamos:

Cegonha [Do lat. ciconia.]
Substantivo feminino. 1.Zool. Ave da ordem dos ciconiiformes, ciconiídea, gênero Ciconia, da Europa. A espécie mais comum é C. ciconia, ave migradora, que nidifica na primavera no N. da África e C. da Europa, e passa o inverno no S. da África e na Índia. Constrói ninhos nas chaminés e habitações humanas, e a eles retorna anos a fio. [Há muitas lendas populares em torno da cegonha, segundo uma das quais os recém-nascidos são trazidos por elas.] Existem 16 espécies conhecidas, no gênero. (…)3. Bras. Caminhão especialmente projetado e construído para o transporte de carros das fábricas às revendedoras; cegonheiro.

A primeira constatação, à luz do Aurélio, é que a cegonha é uma ave européia, migradora e que não existe no Brasil. Sendo assim a tal Rede Cegonha terá que importar muitas aves desta espécie para que as mesmas sejam criadas e adestradas para exercer suas funções no solo pátrio/mátrio ou mudar as suas rotas de migração.

A segunda constatação é que “há muitas lendas populares em torno da cegonha, e segundo uma das quais os recém-nascidos são trazidos por elas” (sic).

Portanto devemos ficar tranquilas, esta rede tem poucas probabilidade de se consolidar, pois existem muitas dificuldades para a sua realização. Vejamos: a tal ave é européia (a dificuldade para o incremento da natalidade naquelas paragens é notória!); a volta ao passado é uma coisa que não combina com o antigo país do futuro, hoje potência emergente consolidada; a saúde da mulher, para valer, não pode ser pensada em torno de ações tão restritivas e reduzidas; e por último, a RELAÇÃO DAS CEGONHAS COM OS RECÉM-NASCIDOS NÃO PASSA DE LENDA!!!

Será que estão nos envolvendo em mais uma ilusão?

Será que ainda precisamos avisar que a nossa proposta – Assistência Integral à Saúde da Mulher – inclui pré-natal, parto e puerpério, tratamento da infertilidade e tantas outras ações indispensáveis ao longo de todo o ciclo vital da mulher? Será que ainda cabe na imaginação de alguém que possamos ser contra as ações materno-infantis? Será que é necessário ficar a todo o momento dando satisfação às forças conservadoras e fundamentalistas que o governo aparentemente não é partidário do conceito de Direitos Reprodutivos?

É importante raciocinar que a trajetória de redução das ações integrais da saúde da mulher nunca foi abandonada pelos que a ela se opõem. Revolvendo a história do programa vemos que o PAISM nunca chegou a ser implantado na sua totalidade, nem operacional e nem geográfica, depois, tentamos o PNAISM que foi esvaziado com manobras diversionistas tipo Pacto pela Vida, 2006 e que por sua vez foi reduzido aos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio e, agora, para coroar o retrocesso a tal Cegonha.

Finalmente, recomendo que para as demais políticas também procuremos no imaginário popular nomes capazes de abranger a profundidade das ações.

Proponho alguns exemplos para títulos de políticas públicas, bem ao gosto dos “marqueteiros” palacianos e dentro de um certo espírito internacionalista. Vejamos: sugiro trocar “Direitos Reprodutivos” por “Controle de Natalidade” e o programa seja “Coelhinho da Páscoa nunca mais” (trata-se de um animal muito prolífico, que merece nominar ações de natureza reprodutiva); “Violência contra a mulher” poderia ser “Chapeuzinho Vermelho, forever…”; pela Igualdade de Gênero “Viva o lobisomem e a lobismulher”; contra a lesbofobia, “Sapatinhos de cristal empowerment”; para desigualdade no trabalho a “Estratégia Branca de Neve” (aquela que trabalhava de graça para os sete anões); para Direitos Sexuais, “João e Maria e a inversão de prioridades – como comer a bruxa” e assim por diante.

Do ponto de vista conceitual seriam contempladas várias lendas, crendices e ditados populares e envolveriam, me parece, o sentido que está sendo dado ao SUS – o de realidade indigesta para o complexo médico-hospitalar-industrial. E, se continuar o desmonte do SUS e as operações para privatizá-lo mediante uma busca incessante de artifícios próprios do estado-mínimo não teremos mais lugar nenhum para implementar nossas políticas. Teremos uma grande Rede Tucana, se o tema continuar sendo a ornitologia.

Finalmente, deixando o “delirium tremens” de lado, é profundamente doloroso que tenhamos que criticar a formulação e implantação de um programa do Ministério da Saúde voltado para nós mulheres. E o mais irônico e melancólico é que isto aconteça precisamente no momento em que temos um governo presidido por uma mulher com valorosa e digna trajetória política.

Nós, mulheres, apenas demandamos o seguinte: – Senhora presidenta, ouça as mulheres! 

* Professora do Departamento de Saúde Pública da UFSC, conselheira do Conselho Nacional de Saúde (1997 a 2003 e 2007 a 2009), membro do Conselho Diretor da Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos. Casa da Mulher Catarina – Florianópolis, SC.

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O seguinte artigo  apresenta os resultados da pesquisa: Sensibilidades e potencialidades do movimento negro do ABC Paulista sobre saúde saúde da população negra e prevenção às DST/Aids, realizada em 2005. Ele foi publicado na revista Saúde e Sociedade sobre Saúde da População Negra, Aids e Movimento Negro.

Pode ser conferido no link:
http://www.scielo.br/pdf/sausoc/v19s2/12.pdf